terça-feira, 30 de maio de 2017

Dilemas morais (artigo na revista Amálgama)

https://www.revistaamalgama.com.br/11/2016/dilemas-morais/


Qual o sentido de nos debruçarmos seriamente sobre eventos que nunca vivenciaremos e tomá-los como referência ética?


Volta e meia  surge o debate sobre algum dilema moral. O debate da vez foi proposto por um programa de TV a pretexto do lançamento do filme nacional Sob pressão: a pessoa deveria escolher entre ajudar a um “policial levemente ferido” ou a um “traficante em estado grave”.
O dilema está no fato de que o indivíduo encontra-se diante de escolhas alternativas e excludentes. O debate em torno dessas situações, reais ou fictícias, traz a seguinte pergunta: o que você faria numa situação como esta? Se as pessoas apenas escolhessem A ou B e não pensassem mais no assunto não teríamos a repercussão geralmente barulhenta de costume. Não raro, no entanto, o indivíduo que responde a esta pergunta, para um lado ou para o outro, faz um conjunto de extrapolações na tentativa de construir sobre si mesmo uma referência ética (ou em casos mais radicais, as extrapolações buscam também uma referência político-ideológica). Se eu escolho uma das opções eu me vejo como portador de certas virtudes e comportamentos, supostamente correspondentes a A ou B, alternativamente, e tenho a expectativa de que os outros também me vejam assim.
Minhas objeções a esse tipo de debate giram em torno de dois argumentos. O dilema tal como geralmente nos é apresentado não existe na realidade. É claro que alguns efetivamente ocorreram, mas então vem o segundo argumento que diz respeito ao seu caráter excepcional e extraordinário tornando-o de pouca utilidade para a construção daquela referência a qual me referi. Se nós pensarmos na probabilidade de tais eventos ocorrerem na vida real da maior parte das pessoas veremos que é extremamente baixa. A julgar pelas reações de algumas pessoas, hoje em dia mais visíveis com a ajuda das redes sociais, esse tipo de debate é visto como um divisor de águas ético que define as “pessoas de bem”- que se parecem comigo, claro – e os meus “inimigos políticos”. Qual o sentido de nos debruçarmos seriamente sobre eventos que nunca vivenciaremos e tomá-los como referência ética?
Em 2013, quando foi lançado no Brasil o filme A hora mais escura, eu acompanhei um debate entre o filósofo Vladimir Safatle e o psicanalista Contardo Caligaris sobre o dilema moral proposto pelo filme. A produção norte-americana narra como foram as investigações para localizar o terrorista Osama Bin Laden. No filme os agentes da CIA recorrem repetidas vezes à tortura para obterem informações sobre o paradeiro do terrorista. O artigo de Safatle, mesmo sem o mencionar explicitamente, é uma resposta ao artigo de Caligaris que propõe a seguinte questão: “Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?”
O artigo do filósofo parte da seguinte pergunta: “podemos torturar alguém cuja confissão nos permitirá desativar uma bomba que matará dezenas de inocentes?” Ao discutir o dilema Safatle prefere seguir o caminho de que há uma intenção (uma má intenção) escondida na astúcia de quem pergunta cuja agenda ideológica seria afastar as pessoas de questões que realmente importam. Não é o caso de expor aqui minhas discordâncias quanto a isso, mas, pelo contrário, sublinhar minha concordância, em especial quando ele afirma:  “Do ponto de vista da filosofia moral, não há exercício mais pueril do que procurar responder a tais inventivas”, pois esses “paradoxos morais de laboratório” pressupõem condições de laboratório, como “sei que o sujeito torturado sabe algo sobre a bomba”, “sei que não há hipótese alguma de ter pego a pessoa errada”, “sei que ele falará antes de morrer”, “sei que a razão de sua ação é injustificável”. Safatle conclui suas indagações afirmando que como ninguém mora em um laboratório, mas depende, no mais das vezes, da sabedoria da polícia, tais condições nunca são completamente asseguradas.
Estas me parecem indagações válidas e que põem em xeque os pressupostos de um dilema moral válido para a vida real. Como aceitar as repercussões de um dilema moral na nossa vida se nossas reflexões o afastam tão radicalmente da realidade?
Vejam, por exemplo, mais essa situação proposta por Dwight Furrow:
Suponha que você esteja atrasado para uma entrevista para um emprego que lhe promete garantir um avanço significativo em sua carreira e um substancial aumento de salário. Você está em Boston, no mês de janeiro. Faz frio e a neve está começando a cair. Para ganhar tempo, você faz um atalho através de uma viela e para, petrificado, ao ouvir um choro de bebê vindo detrás de uma fila de latas de lixo. Você descobre que um bebê foi abandonado, coberto somente por um cobertor fino. Não há ninguém por perto, seu celular está sem bateria, e se você parar para prestar auxílio, certamente perderá a entrevista e sacrificará sua chance de ocupar o novo emprego.
O que fazer numa situação como essa? Segundo o autor, várias pesquisas indicam que a maioria agiria para salvar a criança. Porém, mantendo o foco no que nos interessa, para que o dilema funcione e nos cause algum desconforto moral na vida real precisamos concordar que os vários pressupostos ocorrem na realidade, isto é, “se você chegar atrasado à entrevista perderá o emprego”, “se passar por uma viela”, “se a bateria do celular estiver descarregada”, “se a temperatura estiver alta ou baixa”, “se não houver vivalma para ajudar”, “se não houver ajuda haverá a morte”; etc.
Como dito anteriormente, o que eu desejo destacar é a baixíssima probabilidade de todas as condições ocorrerem concomitantemente e não apenas isso, pois, uma coisa é as chances de tais condições ocorrerem ao mesmo tempo, criando o evento pretendido; outra coisa é as chances do evento em si mesmo (já constituído) ocorrer e se repetir na realidade para uma quantidade significativa de pessoas de modo a representar algo desconfortável,  e passe a ser uma referência de comportamento a ser seguido ou evitado.
Em outras palavras, os dilemas morais são situações-limite extraordinárias com baixíssima probabilidade de ocorrerem na vida real e, desse modo, com pouco poder de generalização pelo simples fato de que ninguém vive em vielas ou laboratórios.
Nesse ponto creio que seja necessário afirmar que nas reflexões sobre tais dilemas talvez haja algum valor heurístico digno de nota, sobretudo no ambiente acadêmico. Talvez. O próprio Safatle os chama “passatempos acadêmicos” e eu, pessoalmente, num exercício de autocrítica, tenho muitas reservas às pesquisas nessa área.
Mas, então, o que importa na busca do que eu chamei referência ética? Uma perspectiva que me parece interessante é defendida por Tara Smith em seu livro sobre a ética de Ayn Rand. Smith dirá que a moralidade é desenhada para guiar as ações humanas no curso normal de eventos (the normal course of events) de nossas vidas e não para casos de emergências ou situações-limite que nunca ocorreram e provavelmente nunca ocorrerão para a maioria dos indivíduos ao longo de todas as suas vidas. O curso normal de eventos é onde vivemos, dirá Smith.
As situações-limite envolvendo questões morais, exatamente por não fazerem parte da nossa rotina, não possuem (ou talvez possuam muito pouco) orientação sobre como devemos agir eticamente no cotidiano. Um princípio de orientação, por definição, só é possível em circunstancias essencialmente previsíveis. Os dilemas morais propostos são o oposto disso. Numa palavra, um princípio de orientação moral que lida apenas com o extraordinário torna-se inócuo para o nosso dia a dia.
Dito isso a ideia de “referência ética” ficará melhor definida se pensada como o conjunto de valores constituído a partir de nossas relações interpessoais reais e ordinárias ao longo do tempo e com o qual nos identificamos e que nos orienta eticamente na manutenção daquelas relações e na busca de nossa noção particular de “bem”.

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