segunda-feira, 20 de junho de 2016

Escritos Avulsos I

Nos "Escritos Avulsos I" encontram-se reunidos 18 contos e crônicas. Eu destaco "O programa". O mestre Pitada ensinava a seus alunos que ele havia chegado onde chegou graças a um programa. O programa do mestre nada mais era que o estabelecimento de objetivos na vida e o meio de alcançá-los: "...desde os meus quinze  ou dezesseis anos, organizei o programa da vida: estudos, relações, viagens, casamento, escola; todas as fases da minha vida foram assim previstas, descritas e formuladas com antecedência..." p. 310
Alguns anos depois, Romualdo, um de seus discípulos, decidiu por em prática o seu programa de vida: casar-se com uma mulher rica, tornar-se senador, viajar pelo mundo etc.
O que chama à atenção no programa de Romualdo é que ele pretende alcançar tudo isso sem o menor esforço. Aliás, casar-se com uma mulher rica é sua prioridade número um. Não se trata apenas de sonhar acordado sem qualquer base na realidade, Romualdo quer mesmo é se dar bem à custa dos outros.

Em um de seus livros José Guilherme Merquior menciona o sociólogo Ralf Dahrendorf (1929-2009) quando este, ainda na década de 70, chama a atenção dos sociólogos para dois fenômenos que merecem análise: o crescente uso de drogas e as pessoas que queriam ganhar dinheiro fácil. A questão das drogas tornou-se um tema corrente entre os analistas sociais, porém a análise de indivíduos que "querem se dar bem" sem esforço, ao que parece, não é visto como um problema social digno de nota. Ganhar dinheiro fácil não passa, necessariamente, pelo cometimento de crimes como o estelionato, por exemplo. As peripécias de Romualdo são retratadas como  "espertezas" de um indivíduo que internalizou a ideia de que ele "merece" alcançar o seu programa de ascensão social indiferente às noções de esforço, disciplina, perseverança, competência, mérito, respeito pelos outros etc. O fim dos "Romualdos" é o ressentimento social, outro fenômeno secundarizado pelos analistas.
A leitura de "O programa", sob este aspecto sociológico, torna-se atual na medida em que nos ajuda a compreender parte do comportamento de indivíduos e grupos de indivíduos numa sociedade a cada dia mais conflitiva e ressentida.

PS.: Acabo de ler a coluna de João Pereira Coutinho na qual o filósofo comenta o último livro de  Theodore Dalrymple, "Qualquer Coisa Serve". Falando sobre o ressentimento social, com humor, Dalrymple sugere a criação da "Faculdade de Estudos do Ressentimento". O acesso seria fácil: "Tudo o que você precisaria fazer seria criticar seus pais num exame público".

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